Muito se fala sobre determinadas estratégias e tipos de treinamento. Se realmente trazem benefícios ao corredor ou se aumentam o risco de lesões. No mundo das corridas não são poucas as polémicas. A única certeza é de que elas estão sempre por aí, provocando discussões e debates entre corredores, treinadores, fisioterapeutas e médicos. Em cidades como o Rio de Janeiro, em que não faltam opções para um bom treino de corrida, não é de se estranhar que cada vez mais as assessoria desportiva utilizem a praia como parte importante da planilha, na maioria dos casos, unindo o útil ao agradável. Afinal de contas, neste calorão que bate à nossa porta, quem não gosta de começar o dia com uma praia e, de quebra, cumprir a planilha de treinamento. Ou vice-versa.
A advogada Maria Silvia Resende, de 32 anos, corre há dois anos, e tem nos treinos na areia uma parte importante de sua planilha, já que gosta de fazer provas cross country. “Fiz algumas provas de corrida de rua das quais jamais me esquecerei, mas me identifiquei mesmo com as provas cross country e corridas de montanha. E justamente pelo desejo de participar de provas que fogem do asfalto, os treinos na areia se tornaram ainda mais importantes. Acho que tenham função relevante no fortalecimento muscular e na resistência”, diz a atleta, que pelo menos uma vez por semana treina nas areias da Praia do Flamengo com a assessoria da Speed Corridas.
A Speed é uma das muitas assessoras que adoptam treinamentos na areia para seus atletas. Todos os dias basta uma volta na orla carioca, de manhã ou à noite, para ver aquele mar de corredores em treinos de tiro, rodagem ou circuitos funcionais. “Oferecemos esse tipo de treino há quatro anos, antes mesmo de se tornar febre no Rio de Janeiro. Incluímos o trabalho de areia no período de base do planeamento dos corredores, como estratégia de força muscular e fortalecimento das estruturas articulares, como tornozelo, joelho e quadril. Normalmente iniciamos com a caminhada na areia para fazer uma adaptação ao terreno e vamos evoluindo, como na corrida de rua. Porém, com mais cautela”, explica Alan Marques treinador e sócio da Speed.
A facilidade no acesso à praia faz com que os treinos sejam cada vez mais concorridos e o índice de falta dos atletas seja quase zero. Mas faz também com que haja excesso por parte de alguns atletas. “Normalmente, além de tiros e outras formas de treino, minha planilha tem treinos específicos para areia, que variam de acordo com a prova pretendida. A corrida na areia foi introduzida na minha planilha graduadamente, com o monitoramento de perto dos professores. De início, tinham volume bem baixo e não havia a preocupação com pace. Procuro conjugar, em um mesmo treino, a corrida na areia, na grama e no asfalto, já que esta é a realidade das provas. Por falta de tempo, não é sempre que consigo cumpri-lo, afinal, preciso trabalhar para financiar toda essa ‘farra’, mas a presença na areia é certa” diz Maria Silvia, com bom humor. Bom humor que foi por água abaixo, quando, por excesso de treinos – contrariando sua planilha -, a advogada se viu às voltas com um edema na tíbia.
Para o professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Alexandre Palma – tem mestrado em Educação Física e doutorado em Saúde Pública – é exactamente o excesso de carga que aumenta o risco de lesões nos chamados exercícios pliométricos, como os realizados nos circuitos na areia. “Se estes exercícios forem feitos correctamente e em dosagem adequada, não creio que possam aumentar a ocorrência de lesões. O problema, que já pude observar em diversos destes treinos, é que há um exagero na carga e na forma com que alguns professores têm ministrado os treinos em circuito e na aplicação em pessoas não preparadas para realizá-los, como os iniciantes e aqueles com sobrepeso”, explica Palma, que já trabalhou com outras modalidades em que se aplicam os exercícios pliométricos, como o futsal.
Alan Marques lembra que a corrida na areia é 60% mais intensa para a mesma corrida no asfalto. Segundo ele, os treinos são prescritos sempre de forma a respeitar a capacidade e o objetivo de cada atleta. Mas… “Quanto ao volume de corrida, não existe uma recomendação. É muito pessoal. Temos alunos que chegam a correr 16 km de areia. O cara gosta!“, diz o treinador.
Médica do Desporto, com formação em Nutrologia e Mestrado em Fisiologia do Exercício, Flávia Pinho Teixeira lembra que os benefícios dos exercícios na areia são muitos, desde que executados na intensidade e volume adequados. Segundo a médica, estas actividades têm maior componente estático e favorecem o fortalecimento muscular, o ganho de massa magra e até podem inibir algumas lesões. “Os desníveis do terreno estimulam os proprioceptores articulares, estabilizando as articulações do tornozelo e dos joelhos. Assim estas articulações ficam mais protegidas contra lesões dos tendões. Além disso, a maior dificuldade na realização dos exercícios também gera maior condicionamento cardiovascular”, diz a médica.
Estes mesmos circuitos na areia, que proporcionam melhoria no rendimento – se aplicados na intensidade e volume correctos – e oferecem riscos de lesões em caso de carga exagerada, também são uma ótima ferramenta em alguns programas de fisioterapia pós-lesões ou de relaxamento pós-prova. O fisioterapeuta do Comitê Olímpico Brasileiro, Claudionor Delgado – considerado por muitos, um dos fundadores da fisioterapia esportiva no Brasil -, ressalta, no entanto, a importância da prescrição individualizada dos exercícios. “Os circuitos de areia são muito bem vindos como parte do treinamento nos mais variados perfis e também podem ser usados como parte da fisioterapia. Entretanto, assim como qualquer modalidade de treinamento, devem ser adaptados para cada indivíduo e também acompanhados pelo treinador ou fisioterapeuta. Este acompanhamento é de importância fundamental para as devidas correcções de postura, do gesto desportivo e do tipo de pisada, entre outros“, explica Delgado, que, entre outros trabalhos, foi fisioterapeuta da Selecção Brasileira nas Copas de 94 e 98.
Delgado explica que a prescrição e o acompanhamento de um treinador são sempre necessários exactamente por que o treinamento na areia pode ser uma actividade dura – visando a uma prova – ou relaxante – pós-prova. “O volume e a periodicidade do treinamento em areia vão depender do calendário do atleta. O circuito desenhado pelo treinador ou fisioterapeuta tanto pode servir como parte de uma actividade de relaxamento, como pode ser muito duro em uma fase de treinamento especial. Na fisioterapia sempre costumo indicar algum tipo de actividade terapêutica na areia. Essas Actividades podem ser especificas para determinada lesão ou também podem ser aplicadas em uma fase pós-lesão, quando serão usadas para readaptação ou retorno ao desporto”, completa Delgado, lembrando que a maioria das lesões nos circuitos na areia ocorre por falta de supervisão ou falha na dose exata de treino.
Profissional de Marketing Desportivo, Henrique Werneck, de 35 anos, pratica desportos desde a adolescência e a proximidade da praia sempre o fez usar as areias em seu condicionamento. Mas somente em 2010, com a intenção de praticar triathlon, Werneck procurou os serviços de uma assessoria desportiva. Pelo menos uma vez por semana está nas areias com o treinador Bruno Germano da Equipe Walter Tuche. Segundo o atleta, é o treinamento funcional na areia que permite sua evolução no desporto e faz com que os resultados melhorem a cada dia e sem o convívio com as lesões. “Há dois anos faço o treino funcional na areia. São estes exercícios que reforçam a musculatura, por trabalharem músculos que outras actividades não conseguem. Assim as chances de lesões diminuem. Jamais me lesionei em treinos ou competição”, diz Werneck, que garante seguir à risca a planilha de treinos.
Para o treinador Bruno Germano, os circuitos na areia melhoram a técnica de corrida, algo com que os corredores começaram a se preocupar mais recentemente “Quando preparamos uma sequência de exercícios, pensamos primeiramente na melhora do gesto técnico de corrida. A ideia é tornar o indivíduo capaz de realizar o gesto com a maior eficiência e o menor gasto energético possível. O Objectivos é tornar a corrida mais limpa e coordenada. Essa necessidade é muito incutida na mentalidade dos atletas que fazem natação, por exemplo, mas os corredores, em sua maioria, não viam o treinamento técnico de corrida como uma necessidade ao seu desenvolvimento. O próprio Henrique disse que só procurou treinamento especializado há dois anos”, explica Germano, lembrando que o treino na areia activa unidades motoras que normalmente não são usadas nos treinos em terreno regular, como o asfalto. “A corrida é um desporto cíclico, em que não há variação do gesto desportivo. Quando um atleta executa um gesto ao qual não está acostumado, ele ativa outras vias nervosas e passa a ter um repertório motor maior. Isso dá mais qualidade à sua corrida”, completa o treinador.
E quase sempre a melhora na qualidade resulta em tempos mais baixos. É o caso do empresário Marcos Zamith, que bateu seus recordes pessoais depois que os treinos na areia passaram a fazer parte da planilha. Com 50 anos e apenas cinco de corrida, Zamith viu-se obrigado a ficar longe dos treinos por um ano, por conta da ruptura dos dois tendões de Aquiles. O corredor retornou aos treinos gradualmente e, completamente recuperado, no início de 2012, passou a treinar na areia, o que jamais havia feito. “A melhora foi nítida. O desempenho, o reflexo, a técnica, o condicionamento. Tudo melhorou muito. Nos últimos seis meses baixei todos os meus tempos. Hoje, pelo menos uma vez por semana treino na areia, o que não deixo de fazer nem debaixo de chuva”, conta Zamith, que aos 53 anos planeia correr sua primeira maratona.
Alexandre Ribeiro, 46 anos, pentacampeão do Ultraman do Havaí e treinador da Pró-Ribeiro, sempre treinou na praia e hoje não abre mão de oferecer aos atletas os prazeres de um treino a alguns metros do mar da Barra da Tijuca. “É importante por vários aspectos. É sempre um prazer treinar na praia. Há um estímulo natural para os atletas que estão com dificuldades de manter a rotina de treinos. Mas é sempre bom lembrar que os treinos devem fazer parte da planilha. Fazer só por que o lugar é bonito e agradável não é treino, é lazer”, diz Ribeiro, com a experiência de quem, no Ultraman de 2011, correu os 84 Km em 6h30min.
O engenheiro Rodrigo Moura, 41 anos, corre desde os 15 e somente depois dos 30 passou a dar qualidade aos treinos, buscando melhora no rendimento. Moura faz coro com Alexandre Ribeiro, embora acredite que os treinos na areia lhe proporcionam mais força e resistência. “Tem sido assim especialmente nas provas longas. Mas se correr já nos dá uma sensação especial de superação de limites, correr na areia então tem muitas vantagens. Além dos resultados físicos, claramente perceptíveis. De manhã cedo a temperatura está óptima, o visual da praia é lindo e o contacto com a areia nos dá uma sensação de liberdade. O esforço é maior, mas a recompensa final vale à pena”, garante o engenheiro.
Modismos e quebras de rotinas à parte cabe aos treinadores saber em que situações, a que corredores ou futuros corredores aplicar os treinamentos na areia e ainda dosar intensidade e volume. Para o professor Alexandre Palma a finalidade destes exercícios deve sempre ser levada em conta. “Se os treinos envolvendo circuitos, força explosiva e específicos são importantes para aumentar o desempenho, para que submeter pessoas ainda pouco treinadas a esses treinos? Alguns professores optam por fazê-los para “quebrar a rotina”, motivar os alunos. Treinos fortes sempre chamam a atenção. Mas, há, sim, um risco (desnecessário, é preciso dizer) de desencadear lesões. Em relação à periodicidade, é possível realizar os circuitos três vezes por semana, mas dependerá do que se faça nas estações. Por fim, ainda que os circuitos possam ser uma óptima opção, é preciso considerar que o trabalho de força tradicional pode proporcionar uma base para os primeiros, além de contribuir para dificultar os riscos de lesões”, completa Palma.
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